Imagem da internet

Letras na Sopa

Eis que! Cá estamos eu, eu mesmo e outros eus, não bem aqui, mas assim de lado, de refúgio ou refluxo de ideias, por graça e força de muitos uns e zeros, na aparente essência de letras, acentos, pontuações e espaços num ensopado virtual.

Chego sem pedir licença nem permissão, apenas por ocasião de. E vou tentando navegar o rio de sons e imagens que corre dentro de mim, fluindo por entre tempos, brechas, sustos e sopros, numa espiral rumo a uma galáxia distante cujo centro está no meio do peito.

Obscuro? Não, apenas um arroubo poético, quase patético, para afinar o tom. Quem quiser ler, quiçá. Qui sait? Não prometo assiduidade, simpatia ou samba-no-pé. Apenas expressão de desejos literários: ler, ter, vários. A quem abrir esta página, um pedido: se gostar, comente e recomende; se não gostar, poetize.


Vicente Saldanha

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

sábado, 4 de setembro de 2010

Aviso

O ministério do ócio adverte:
trabalhar em demasia
dá azia.

domingo, 22 de agosto de 2010

Synthetic Serenade 2

Crooked
hill,
Moonless
chill,
Your
doorsill.

(Versão de "Serenata Sintética", de Cassiano Ricardo)

Synthetic Serenade 1

Crooked
street,
Moonless
suite,
Your
feet.

 
Versão de "Serenata Sintética", de Cassiano Ricardo:

Rua
torta,
Lua
morta,
Tua porta.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dívida de Vida

Se cada um cuidasse da sua vida devidamente, a vida seria mais fácil de ser vivida.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Alice

Alice estava sentada num banco do campus, à sombra de uma árvore, lendo um romance. Aproveitava uma aula de psicologia infantil que não acontecera e foi botar a leitura por prazer em dia. Visualizava as descrições de lugares e paisagens e deliciava-se com os diálogos espirituosos.

Alice quase não notou quando um coelho branco apareceu por perto, usando um casaco e mexendo o nariz. Mas quando ele tirou do bolso um relógio, abriu-o e começou a resmungar, Oh não! Estou atrasado! Estou atrasado! ela não pôde deixar de perceber. Olhou para ele, intrigada, sem fechar o livro, e esperou que ele fosse dizer algo mais. Porém, quando ele lhe disse, agora mais alto e tocando no relógio, Depressa! Vamos lá! Estamos atrasados! Temos que ir! Alice apenas sorriu-lhe, complacente, e disse, vai você. Hoje não tô a fim. E voltou ao seu livro.

E o Coelho enfiou-se no primeiro buraco que encontrou.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

No sinal vermelho,
a borboleta no para-choque traseiro:
pegou carona até a próxima flor.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Estrelas –
gosto de vê-las,
procuro entendê-las,
tento escutá-las.

Gosto de velas,
gosto de ouvi-las:
costumo acendê-las
e admirá-las.

Estrelas e velas,
cintilando e luzindo,
trocam segredos
através da janela.

terça-feira, 16 de março de 2010

o canalha

Sou querido – mas não presto.
Seu preferido – mas não presto.
Minhas relações não recomendo.
Meus irmãos são malandros;
meus amores – rancores;
meus amigos, um perigo!
Fuja deles! Finja desconhecê-los.
Sou fingido – e não presto.

De fora sou formoso,
de longe sou gentil,
no ocaso, caridoso,
à pouca luz, o par perfeito;
sou perfumado, bem arrumado,
mas preste atenção – pois eu não presto.

De perto sou perfídia,
meu sorriso é malicioso,
minhas atenções – más intenções.

Ao meio-dia não me encontram,
meu telefone não existe,
não lembram meu sobrenome,
meu endereço não confere,
meus dados não têm data.
Saia de perto – pois eu não presto.

Minhas drogas lícitas têm explícito defeito
(as outras são segredo):
meu cigarro dá pigarro,
a fumaça te ameaça,
meu uísque, de tão falso, está vencido.
Eles não prestam – porque eu não presto.

Não confie em mim,
não me conte segredos, confidências,
não me empreste dinheiro – pois devolver esqueço.
Cartas de bons antecedentes, referências, recomendações?
Rasgue rápido: são falsificações.
Pouco atestam – porque eu não presto.

Não fale comigo, me processe!
Não me toque – não se contamine.
Não olhe nos meus olhos, pois eles seduzem, abduzem, confundem.
Não me dê ouvidos, não seja iludido.
Não me dê voz, nem voto
de confiança ou felicidade.
Me dê cobrança, inquérito, cadeia!
pesadas correntes, algemas, mordaças.
Não chegue perto – pois eu não presto.

Minhas palavras, ideias, opiniões
são sonoras, são charmosas,
mas vazias, repetidas – são chavões.
Meus gestos são calculados,
minhas lágrimas são dosadas
para dar crédito ao meu teatro.
Meu beijo é venenoso.
Por isso fique longe, fique esperto,
porque no fundo, ao fim de tudo – eu não presto.

sábado, 13 de março de 2010

Vaga-lume

                         I

Sou um vaga-lume na Via Láctea,
vagalumeio entre a poeira das estrelas
em busca de luz.
Os signos sinalizam meu caminho
no zodíaco que há dentro de mim;
Áries e Eros me lançam ao mar de Peixes,
mas a sombra de Plutão não me deixa ver
com clareza o mapa impreciso,
cheio de cálculos complexos, sem nexo ou respostas
às minhas perguntas mal-formuladas.
Vaga lembrança de questões:
de onde venho, para onde vou,
onde o tempo, em que lugar estou?

Enquanto vagueio na Viagem,
me guio, ao longe, por miragens.
Me aqueço em sóis de adoradores,
orbito planetas de opinadores,
salto em luas de alucinados.


                         II

Sou uma constelação de vaga-lumes,
meus átomos são galáxias;
minhas moléculas, sistemas estelares.
E o lume que brilha em mim
não é a vaga luz refletida das luas,
mas o fogo brilhante das estrelas
que ilumina meu céu sem regras
nem previsões.

E sigo a viagem por minha via láctea;
não mais vagueio pelos mapas:
procuro usufruir o caminho,
já não me inquieta o destino.

Paródia de “Vaga-lume”

Sou um vira-latas da Via Láctea,
corro atrás de caudas de cometas,
reviro asteróides rodopiantes,
me abrigo em buracos negros,
me escondo no lado escuro de luas cheias.

Abano o rabo para as estrelas,
uivo para luas novas
e mijo em planetas para marcar terreno.
Coço minhas pulgas estelares,
e as espalho em constelações,
farejo nebulosas e fujo de supernovas.

Cão sem dono e sem estirpe,
não orbito planeta algum:
me aqueço ao sol da meia-noite
e rolo na poeira das estrelas.
Rosno para nebulosas previsões,
pois perdi meu signo numa estrela cadente
atrás de Cão Menor.

Solto gases estelares
em flatos atômicos.
Meus átomos são isótopos;
meu olhar, raios X.

Farejo meu caminho
enquanto viro latas.
Espanto a Noite com meu latido,
vagueio sem mapas:
aqui e agora, meu destino.

sexta-feira, 12 de março de 2010

O balão

Um balão cruza o céu, sozinho, voa solo, levado pelo vento,
dança sob o fundo de nuvens,
se esconde atrás das copas das árvores,
aparece, desaparece, aparece novamente
e some em sua viagem rumo ao nada.

O balão não sabe que existe,
Mas se soubesse estaria contente em poder voar,
Vendo as formas e cores abaixo,
Árvores prateadas, cachorros dourados, telhados verdes, famílias azuis, ciclistas verdes, namorados vermelhos, automóveis lilazes, postes cor-de-rosa
– e alguma pomba pousada na cabeça de um general.
O balão se sentiria livre na leveza do seu voo,
No frescor do vento inconstante.
Sentiria falta de seu bando? (balões coloridos, mudos, porém solidários no suporte)
Sentiria falta da mão da criança faceira e falante, contente com seu balão – e o deixara escapar?
Ou da garota que o ganhara de presente do namorado, tímida e romântica e, distraída, o deixara soltar?
A criança e a garota sentiriam falta de seu presente voador
e o vendedor de balões, caso o balão se tivesse desprendido, também sentiria sua falta, prejuízo de gás e balão.

Mas o balão voa
e não sabe para onde voa,
flutua por entre prédios e postes e árvores
num balé claudicante.
E assim seguirá, levado pela brisa,
até seu fim por bico ou ponta ou pressão.
Então será borracha colorida caída sobre galho ou fio de luz,
ou talvez, por milagre, caia na calçada ao lado da criança que antes o teve, agora entretida com um algodão-doce.
A criança gritará meu balão!
mas ele já não poderá responder
com sua cor e sua dança.
Não mais balão,
um emaranhado inerte e sujo de látex e barbante.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Re-ditados

Homem que é homem não chora
lágrimas de crocodilo.

Matei dois coelhos com uma cajadada.
Aí vieram outros cinquenta, todos seus filhotes, e arruinaram minha plantação de cenouras.

Mais vale um pássaro na mão
que dois na gaiola;
Mais vale uma raposa na mão
que duas numa estola;
Mais vale um jacaré na mão
que dois em bolsa de madame;
Mais vale um elefante na mão
que dois num teclado de piano.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Haicais da metamorfose

casulo na calçada –
mendigo enrolado
em coberta de lã.

casulo brilhando:
sereno refletindo
as estrelas geladas.

borboleta parda
pousada sobre o corpo
no frio da manhã.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

kosmos (ou Variação sobre uma Letra de Vitor Ramil)

Criança não é homem
homem não é velho
velho não é morto
morto não é osso
osso não é pó
pó não é vento
vento não é tempestade
tempestade não é mata
mata não é queimada
queimada não é rio
rio não é oceano
oceano não é horizonte
horizonte não é fim
fim não é história
história não é descobrimento
descobrimento não é índio
índio não é cocar
cocar não é carnaval
carnaval não é favela
favela não é fome
fome não é discurso
discurso não é sindicato
sindicato não é revolução
revolução não é guerra
guerra não é bomba
bomba não é deserto
deserto não é pedra
pedra não é areia
areia não é tempo
tempo não é destino
destino não é signo
signo não é religião
religião não é totem
totem não é caverna
caverna não é fogo
fogo não é luz
luz não é verdade
verdade não é fé
fé não é ciência
ciência não é máquina
máquina não é progresso
progresso não é aço
aço não é sangue
sangue não é miséria
miséria não é grito
grito não é grilhão
grilhão não é prazer
prazer não é sexo
sexo não é culpa
culpa não é castigo
castigo não é perdão
perdão não é paz
paz não é uma pomba
pomba não é amor
amor não é ciúme
ciúme não é crime
crime não é punição
punição não é dor
dor não é justiça
justiça não é silêncio
silêncio não é boca
boca não é língua
língua não é palavra
palavra não é poesia
poesia não é alma
alma não é deus
deus não é imagem
imagem não é igreja
igreja não é céu
céu não é estrela
estrela não é sonho
sonho não é lua
lua não é mãe
mãe não é ventre
ventre não é infinito
infinito não é universo
universo não é microscópio
microscópio não é célula
célula não é semem
semem não é feto
feto não é criança
criança — pai do homem.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Response to Gertrude Stein

A sore is a sore is a sore is a sore.
Some will heal,
some won’t.
Lovely loneliness.
Some will feel,
some won’t:
Lonely loveliness.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

à la minuta
ala minuta
alá minuta
alaminuta
a-la-mi-nu-ta

Alá Minutá
Al Amin Ut’ah
Alá, Amin não tá.
Aliás, a mim não falta.

Mas o bife bem passado,
um ovo estalado,
o arroz acompanhado
de feijão bem temperado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

o fim do mundo

O mundo acabou numa quarta-feira, às três e dezessete da tarde, hora local. A ocasião perfeita, pois ninguém esperava. Ao contrário das previsões milenares, o Apocalipse não se deu com espalhafatosos shows pirotécnicos de raios e trovões, ou tonitroante soar de trombetas. Tampouco houve sonhos agourentos de videntes. Os astrólogos nada viram nos astros que pudesse antever o Fim das Eras. Para os astrônomos em seus observatórios, nada havia nos mapas estelares que acusasse algum fenômeno em andamento. Nem mesmo as Bolsas de Valores tiveram movimentos extraordinários que fizessem suspeitar alguma mudança mundial iminente. Não houve prenúncios. O único sinal visível foi uma leve agitação dos animais no zoológico, momentos antes.

O Fim foi rápido e definitivo. Súbito, o Sol expandiu-se num clarão que tomou conta do céu, como se engolfasse a Terra. Envoltos na luz cegante, ninguém pôde abrir os olhos que não tivesse as retinas queimadas. Numa fração de segundo a temperatura subiu muito. Em toda a face iluminada da Terra, quem estava desabrigado nas ruas sofreu queimaduras. Quem estava ao sol em praias tropicais foi carbonizado instantaneamente. A superfície dos mares entrou em ebulição. Florestas inteiras incendiaram-se. Objetos e casas prenderam fogo espontaneamente. Mas as pessoas mal tiveram tempo de gritar, apavoradas. Alguns segundos depois, a Luz se arrefeceu, diminuindo aos poucos. Porém o Sol não voltou ao normal: continuou enconlhendo-se gradualmente; em seu lugar, surgia pouco a pouco no horizonte uma noite crescente, pontilhada de estrelas. E o Sol foi ficando cada vez menor, como se de fato diminuísse de tamanho ou se distanciasse — que diferença? —, até tornar-se ele mesmo uma entre as incontáveis pequeninas estrelas no céu. E o que minutos antes fora uma tarde ensolarada, era agora uma vasta noite repleta de estrelas. Os que se aventuraram a olhar para o Sol moribundo, juraram vê-lo diminuir até ficar minúsculo e por fim apagar-se. E nesses poucos minutos, nem um ruído veio do céu. Por toda a parte onde fora dia, milhões de explosões, devido ao calor repentino: refinarias de petróleo, usinas nucleares, fábricas, edifícios, explosões e incêndios numa colossal reação em cadeia. Porém no céu, nem um trovão. O Sol explodiu e desapareceu sem ruído: o mundo acabou em silêncio e solidão.

A estupefação e o pasmo foram tais que levou tempo até que alguém conseguisse pronunciar a primeira frase:

- É o fim do mundo...

A essa altura, os cegos, os queimados e os desabrigados já gritavam em desespero e dor. Muitas pessoas não recobraram a consciência: permaneceram catatônicas na posição em que estavam quando a coisa aconteceu. Outras, passado o susto inicial, tentavam convencer-se de que se tratava apenas de um fenômeno metereológico estranho, algum eclipse inusitado. Outras ainda, não fosse a pele chamuscada, jurariam estar sonhando. Houve quem não pensasse nada, apenas tentasse socorrer das chamas algum parente ou conhecido. Até que a implacável constatação desceu às mentes, com um calafrio gelado na espinha: o sol tinha desaparecido.

- Meu Deus, o Sol se apagou: é o fim do mundo!

A frase espalhou-se entre as pessoas com a mesma velocidade das chamas. Em pouco tempo, multidões gritavam desesperadas e corriam em desatino pelas ruas das cidades. Sem rumo: para onde quer que fossem, tudo era uma noite imensa e inexorável.

Quem tinha alguma crença ou fé só conseguia se perguntar: “Por quê? Por quê?!” Mesmo os crentes mais fervorosos não conseguiam admitir que tivesse chegado o Momento. Os cristãos e os muçulmanos sentiram pânico pelo inesperado Apocalipse, e desesperada frustração por não terem sido arrebatados. Os ateus finalmente acreditaram em Deus, e lamentaram não se terem arrependido antes.

E então, como se os medos recônditos de cada um saíssem de suas entranhas e viessem à tona, começou a esfriar. O primeiro sinal foi um arrepio — a brisa? pânico? — um arrepio como o que se sente num entardecer de outono — onde era verão. E logo o arrepio tornou-se frio constante. E grossas nuvens começaram a cobrir o céu noturno, e com elas ventos gelados começaram a soprar. Em todos os continentes, chuvas de águas gélidas despencaram do céu coberto. Flocos de neve começaram a cair, e atrás deles mais flocos, e outros mais, e em breve eram tempestades de neve — nas montanhas, nas florestas, nos desertos. O chão cobria-se de um branco silencioso e feroz que não se distinguia na escuridão. A água dos oceanos foi-se tornando em gelo. A Noite Eterna, mortal e desoladora, abateu-se sobre a Terra.

O pesadelo era terrível demais. Não havia como escapar à Noite, nem como abrigar-se dela. Logo não havia mais energia para comunicação ou aquecimento. Quem ligasse o rádio em busca de esperança, só ouvia estática. A água começou a faltar nas torneiras.

Quanto tempo se passou? Dias? Meses? Impossível dizer: os calendários perderam o sentido de ser. Os que não morreram queimados no começo nem tiveram coragem de tirar a própria vida, viram a Eternidade, e perderam a razão. Perderam os escrúpulos, passaram a roubar, matar, tornaram-se canibais, e por fim morreram de fome e frio. A maravilha da criação, obra-prima da natureza, detentor e guardião da inteligência e da cultura, o pequeno e frágil ser humano teve seu fim em dor e desalento, esquecido pelas Alturas e tragado pela noite negra, fria e infinita. Também pereceu toda forma de vida: os animais e as plantas, dos microscópicos aos gigantescos, morreram todos, primeiro pelo fogo, depois pelo frio.

E a Terra, sem astro guia, ficou vagando sem rumo e sem vida pelo espaço sem fim.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Vingança

Ultimamente o espelho anda de mal comigo. Não me faz elogios, agrados ou cumprimentos. Só me denuncia olheiras, rugas e cabelos brancos. Comenta meu ar cansado, ri do meu sorriso amarelo, debocha do meu penteado, desvia o olhar do meu. Aí abro o chuveiro bem quente e deixo o espelho ficar todo embaçado, só de birra. Tiro-lhe a única coisa que não pode me negar: o reflexo dos meus dias.
um bom cálice de vinho
um belo par de coxas ao meu lado
Billie Holiday rasgando na vitrola
uma caneta e um bloquinho:
estou com a vida que pedi a Baco

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Centonomatopéia

Passarinho no jardim:
profusão de perninhas
tamborilando um trote.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Flores

Dona Rosa, oitenta e nove anos, morava sozinha, tinha uma violeta ao lado da poltrona da sala e adorava as novelas das seis, das sete e das oito.
Um dia a violeta murchou, mas Dona Rosa criou raízes e floresceu.
Um gato atropelado?
Um tênis morto
no meio da rua.
A gorda na balança
dança um samba
e balança a pança.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Obituário

O poeta Ildefonso Brás Guimarães Corrêa de Andrade,
oitenta e sete anos de alexandrinos e rimas emparelhadas,
morreu esta madrugada de metáfora aguda.
Deixa livros empilhados, papéis amarelados, uma Olivetti Studio 45, duas canetas Bic e um lápis Johann Faber no. 2 preto.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

In memory of Allen Ginsberg

When I grow up I want to be an astronaut a doctor a top model a superstar
When I grow up I want to have a big house with a swimming pool and a Jacuzzi
& I want to have 3 cars & travel all around the world
& I want to have 5 children & a great job & everybody will love me
& I want to be the President so I can change the world.

Now I have to work hard to make ends meet
& I don’t have time & my boss annoys me
& the government I voted for is incompetent & corrupt
& I have to pay the rent & do therapy & wonder if my son is doing drugs.

When I grow old I want to relax & enjoy my free time & read all the books I couldn’t before
& travel a lot & tell stories to my grandchildren.

Now I feel tired & my medicine cabinet is bigger than my suitcase
& I’m not afraid of dying but I’m afraid of bills
& winter is so cold & I can’t hear well & cholesterol is my nightmare
& my heart worries my doctor & I can’t remember where I’ve left my keys
& my old friends are all dead & my granddaughter & her new girlfriend come to visit me at Christmas
& I don’t want to be left alone.

When I die I want to have a beautiful funeral & be mourned & remembered
& make peace with God.

Now I just want it here & nothing else.
pincelada cinza
no azul celeste:
nuvem borrada
lago sereno,
espelho do céu:
peixe cortando água.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ideia sem acento
não parece boa ideia.
Parece uma falta na ideia,
como um pensamento incompleto,
uma ideia manca,
qual faltasse uma fagulha
numa faísca de luz.

Mas sigo assim, ideando,
assentando ideias onde posso,
sem acentos
mas pingando is,
movendo manivelas
de engrenagens ideais.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Trajetória

uma colina sossegada e uma casinha de madeira no topo uma casinha pequena e aconchegante as portas e janelas maciças e um fio de fumaça saindo pela chaminé o céu aberto umas nuvens douradas contra o sol se pondo uma horta e o trigal dançando como um lago soprado pelo vento manso (um barulho: o delegado vem na direção das grades com um molho de chaves na mão) vasto bigode queixo reto severo com uma cicatriz o padre de manhã tentando me convencer a aceitar o perdão divino acredito em Deus o que não acredito é nos homens (o delegado escolhe uma chave do molho chegou a hora) que cansaço! (ele abre a fechadura enferrujada) me levantar não tem nada no olhar dele raiva medo compaixão nada sou apenas mais um um passo à frente (ele me algema) o soldado barbudo parado na porta me olha com desprezo como se tivesse me chamando de patife nojo vontade de cuspir na cara dele qual era meu último pedido deixassem meu irmão em paz ele não tinha nada a ver com a história não sei se vão atender (abrem a porta) o sol do meio-dia forte uma carreta grande e velha o cocheiro segura as rédeas de um pangaré e me olha com ódio e temor outro soldado sentado atrás do cocheiro assustado em ver o condenado mas quer parecer que não (um empurrão e me levam até a carreta) uma bela e luxuosa carruagem reservada pra mim com uma parelha de garanhões de raça! sentar no assoalho nu da carreta nada é totalmente real talvez a realidade não passe mesmo de um sonho que a gente insiste em sonhar (o nojento também sobe e senta do lado do outro e segura a espingarda) pronto pra atirar em mim bem que ele gostaria (um safanão: a gente começa a se mover e anda devagar) um belo plano pensado em todos os detalhes o assalto do século e na última hora... aquele traidor miserável! tomara que apanhe sífilis e apodreça na cadeia! nunca desejei a morte de alguém pelo menos não até o pessoal começar a reagir e a polícia ficar no nosso encalço aí sim tive que dar cabo de uns mas não que gostasse mas ele merece como o soldado é moço! um rapazinho de rosto imberbe transparente quer mostrar segurança mas no fundo tá se borrando de medo na certa é o seu primeiro enforcamento não sabe o que é meter uma bala nos cornos de um infeliz ainda não sentiu cheiro de sangue ainda não sentiu a morte quando a gente mata pela primeira vez se sente a morte tão perto da gente quanto da pessoa que a gente tá matando aposto que se eu saltasse e desse o fora ele ainda hesitava em apertar o gatilho mas tem o outro o verme me encarando com aquele meio-sorriso debochado espere só que um dia você ainda leva um tiro no ouvido vou me virar de satisfação no túmulo sujeitos como você deviam ser afogados ao nascer as pessoas todas curiosas na rua mais que isso satisfeitas claro pra vocês é fácil bons cidadãos respeitadores da lei da ordem da moral e dos bons costumes palavras bonitas e fáceis quando se tem tudo enquanto isso meu pai bebia e batia em nós minha mãe doente minhas irmãs caíam na vida e meus irmãos arrumavam briga que queriam que eu fizesse? ninguém é bandido por vocação e agora vocês aí contentes por mais um que vai pagar pelos seus crimes voltar ao pó onde foi que ouvi isso? pó tudo não passa disso nem mesmo essa cidade perdida no meio do nada as casas de tijolo pó a rua que vai ficando pra trás pó o céu limpo umas nuvens passam rápido não querem ver a sentença vontade de sair voando passar por cima das cabeças de todo mundo e gritar Eu sou livre! Não sou um ladrão e asssassino miserável! Também tenho sentimentos e sonhos sair voando e encontrar Angela levar ela para bem longe pra outro país Mas não falam a nossa língua! tanto melhor se ninguém se entendesse era a maior confusão e era mais fácil pros ladrões ninguém percebia o que eles tavam fazendo e eles não precisavam matar ninguém (dobrando uma esquina) ali adiante a praça já cheia de gente no centro o Altar onde vai se realizar o espetáculo se pelo menos meus colegas aparecessem... a Forca forca a palavra não soa mais tão pesada também é só no que penso desde a prisão pensando bem sempre soube que meu destino era a forca se não morressse de tiro antes mas nunca pensei em quando ia ser a morte nunca é pra gente como será a morte? que vontade de ver Angela saber como ela tá não, é melhor que fique com os outros é mais seguro Angela às vezes eu não entendia você se preocupando com o que eu comia bem na hora de ir pra ação ou então cuidando de um ferimento de faca ou de bala me tirando a camisa com cuidado fazendo curativo sem perguntar nada só como eu tava você bem que queria dizer pra eu largar essa vida arranjar um emprego mas não tinha coragem de falar nada disso só me dizia com seu olhar e quando eu tava de tocaia ou no meio de um tiroteio às vezes via você angustiada me esperando e ansiava pra que aquilo tudo acabasse logo só pra estar junto de você de novo e me sentia poderoso mais forte até minha pontaria melhorava mas quando um tiro passava zunindo ou me pegava de raspão eu sabia que podia ficar ali mesmo estatelado feito um cachorro com a língua de fora e você sozinha me esperando ia sofrer mas pelo menos a angústia ia passar agora nada mais me atinge tô além disto tudo subir no palanque sou o centro das atenções todos esses olhares acusadores (o soldado solta as algemas e amarra as minhas mãos) o juiz vai proferir a sentença culpado... assasinato... enforcamento... o padre vai falar (encomenda meu corpo num latim surrado) até eu era capaz de falar latim melhor do que isso obrigado mas já sei pra onde eu vou é a vez do carrasco quase não tinha notado ele antes sujeito grande e musculoso os olhos dentro da carapuça os olhos tão vivos a respiração pesada você tá vivo! é um homem como eu! (enfia uma carapuça na minha cabeça) tudo escuro talvez a morte seja assim Escuridão Silêncio Frio talvez, logo vou saber (o laço se ajusta no meu pescoço) meu corpo teso o grande momento o exato instante em que tudo acaba o que foi isso? tiros! (longe mais perto mais perto) cavalos e gritos meu nome! tiros daqui também (vozes gritando de um lado pro outro) tenho que sair daqui tenho que sair! desamarrar as mãos rojões espocando o vozerio daqui um pouco vou tá livre Angela... se eu me safar dessa vou levar você pra bem longe e a gente vai começar uma vida pacata e honesta na casinha no alto da colina tiro de tudo que é lado preciso me soltar! o nó muito apertado Ai!! (clarão) será que me ouviram? que dor! (fogo no rim) uma bala... meu deus fui atingido não foi nada eu preciso sair daqui assaltar o banco ratos na cela não comi o café da manhã soltar as mãos (minha roupa úmida) tô sangrando?! o sorriso cínico o soldadinho com medo meu pai me batendo com o cinto minha mãe definhando na cama Angela Você tem que comer mais... Angela me beijando o seu corpo macio me envolvendo e me engolindo que dor! quebrar a vidraça da igreja o padre fazendo o sinal da cruz o cristo crucificado aumentando de tamanho e me agarrando com garras de águia e um ar feroz preciso me livrar das cordas calma eles tão aí onde tão eles não ouço nada sair daqui (dor ardendo) que sede! o revólver na cara do guarda a polícia chegando atravessar o rio de noite preciso soltar as mãos água... preciso de água tenho que sair daqui tenho que sair (um tambor gigante e lento bum  bo    bum     bo      bum       bo   o corpo pesado eu ficando longe... longe) tenho que... tenho que... (aperto na garganta sufocando) não tem ar! o tambor em disparada então galope de cavalo e barulho de água correndo e sou virado do avesso e tudo um silêncio enorme um vácuo preto virando verde e verde virando violeta e violeta se transformando em dourado e dourado se dissipando em branco e branco absoluto e infinito



1985 / 1995 / 2010

sábado, 23 de janeiro de 2010

Ondas

Ondas que rastejam, quase submissas, na imensa superfície arfante do mar. Somam-se umas às outras, num balé ritmado e sem fim, acumulando forças numa ondulação crescente. Avançam como um exército sorrateiro, chamam o vento para dar-lhes mais impulso e se erguem qual serpente, armam o bote e finalmente arremetem num ataque suicida, rompem-se nas rochas, cortando seus ventres nas lâminas frias das rochas.

Ondas que avançam ferozes sobre a areia, desenrolando seu próprio sal, e deixam uma lâmina de seu caldo. O sumo penetra suavemente entre os grãos e a vida por um instante se estende em pequenas formas a correr agitadas, para em seguida desaparecerem. O poderoso mar suspira e recua de sua fúria, dizendo volto em breve, me aguarda, terra, ainda não viste nada. E novamente o caldo impetuoso, esbravejando e bufando, borbulhando sua espuma raivosa; desenrola-se o tapete esbranquiçado e se desfaz de encontro com a arenosa prancha. A ira do deus-mar estronda no golpe e de novo se recolhe, o rastro brilhante e salpicado de luz. Resta um cordão de espuma, delineando o avanço do braço do poderoso oceano, a cor uma mistura de água borbulhante e areia.

Ondas que crescem da superfície animada, ganham volume, se erguem buscando o céu, tomam forma, imensas bocas que se abrem num urro profundo e terrível, e no auge de sua força tropeçam sobre suas irmãs e despencam num brado convulso e são engolidas por sua imensa mãe.

Adiante, o infinito respira em ondas gigantes e suaves, de andar lento e antigo. O imenso lençol esverdeado acena para cima e para baixo e as ondulações se irmanam até onde se pode ver.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Tempestade:
cavalos galopando em disparada
sobre meu telhado.
elétrico haicai:
raio que cai
e acende a árvore.

Haicai elétrico

O raio eletriza o ar,
ilumina a noite
e acende a árvore.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Haicai cartum

Um cachorro se coçando
incomodado, buscando alívio:
– Pulga que partiu!

prato frio

Medeia, 57: Ele me trocou por uma modelo de dezenove. Depois da overdose de entusiasmo e Viagra, veio o filho, daí o rebuliço, o divórcio milionário dela, por fim o infarto.
Mandei-lhe flores e um espelho no hospital.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Credores

Eles choram e esbravejam.
Eu, Rio.

Rompimento

Ela bate a porta; um fiapo de "vou embora!" ecoando no apartamento. O elevador no térreo. Resolve descer as escadas. No primeiro degrau, o salto quebra e a dor insuportável. Sentada no chão, as lágrimas lhe rasgam. Um barulho na porta – sobressalto. Mas é a fechadura sendo trancada.
Quando o elevador finalmente chega, ela sabe, mancando, que agora tem destino: o pronto-socorro.

(Miniconto escrito na Oficina de Criação Literária ministrada por Laís Chaffe no UniRitter no primeiro semestre de 2008.)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

UniVerso

A melodia do Cosmo (a música das esferas, o eco do big bang) é a grande poesia divina.

(Imagem da internet)

depois da chuva

o amarelo do ipê
se espelha num tapete
amarelo no chão.

haicai ao sol

roupas no varal
– bandeirinhas de São João –
pingo-estrelas ao chão.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Missão Impossível

Encontre aquele homem!
O resto desta mensagem se auto-destruiu há cinco segundos.

Nova Vida

Quando ela recebeu do entregador a caixa branca, abriu-a rápido assim que ficou a sós. Dentro, apenas uma rosa branca e um envelope com o nome dele. Estranhou: o romance fora curto, embora intenso. Ele queria recomeçar? Descobrira que ela estava grávida? No cartão: “Eu não sabia. Por favor, me perdoa!” E o xerox de um exame de HIV.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Agridoce

O rapaz entra no restaurante, senta-se junto à janela e deixa a mochila na cadeira. O suor lhe escorre pela testa. Inspira o ar refrigerado enquanto a música oriental preenche o ambiente. Procura o cartaz familiar ao fundo do salão, levanta-se e vai ao banheiro.
Serve o prato no buffet, senta-se e come lentamente, a música suave embalando-lhe a mastigação distraída.
No caixa, a dona mexe alguns papéis. Um menino de uns cinco anos brinca perto dela, fala sozinho em língua estrangeira e caminha para longe e perto. Por vezes, a criança pergunta algo e a mulher responde com monossílabos na língua nativa dos dois.
Ela atende um cliente, esboça um sorriso tímido e lhe dá o troco com uma leve deferência. O menino imita o gesto, sorriso aberto para o homem que sai.
Durante a sobremesa o rapaz ouve a voz estridente da criança, correndo até a porta do restaurante e de volta para junto da mãe. E então: a mulher ralha com o menino em língua raivosa, olha ao redor e lhe chuta o flanco.
A colher caída ao lado do prato, o rapaz não consegue mais engolir. Uma onda de gosto azedo sobe-lhe do estômago e o pudim fica intragável.
Enquanto ele paga sua conta, nota o menino encolhido atrás da mulher, soluçando, e ela esboça um sorriso tímido e lhe dá o troco com uma leve deferência. Ele olha fundo nos seus olhos, tentando ler amor, raiva, ou tradição. Nada, apenas o sorriso sem convicção e um obrigado tortuoso. Quer dizer algo, protestar, mas as palavras trancadas.
Sai com a mochila no ombro e de cabeça baixa.

(Conto produzido na Oficina de Criação Literária ministrada por Marcelo Spalding no UniRitter no segundo semestre de 2008.)

A dama de vermelho

Vermelho fogo, de um ruivo intenso e profissional, era seu cabelo volumoso. Vermelho escarlate, o vestido justo que lhe moldava as formas do corpo. Vermelho rubi, o batom que avolumava os lábios entreabertos. Vermelho carmesim, o sapato de verniz lustroso ao lado do corpo inerte como uma marionete no chão.
Vermelho quente e viscoso escorria do buraco de bala em seu peito.

(Miniconto produzido na Oficina de Criação Literária ministrada por Marcelo Spalding no UniRitter no segundo semestre de 2007.)