Imagem da internet

Letras na Sopa

Eis que! Cá estamos eu, eu mesmo e outros eus, não bem aqui, mas assim de lado, de refúgio ou refluxo de ideias, por graça e força de muitos uns e zeros, na aparente essência de letras, acentos, pontuações e espaços num ensopado virtual.

Chego sem pedir licença nem permissão, apenas por ocasião de. E vou tentando navegar o rio de sons e imagens que corre dentro de mim, fluindo por entre tempos, brechas, sustos e sopros, numa espiral rumo a uma galáxia distante cujo centro está no meio do peito.

Obscuro? Não, apenas um arroubo poético, quase patético, para afinar o tom. Quem quiser ler, quiçá. Qui sait? Não prometo assiduidade, simpatia ou samba-no-pé. Apenas expressão de desejos literários: ler, ter, vários. A quem abrir esta página, um pedido: se gostar, comente e recomende; se não gostar, poetize.


Vicente Saldanha

domingo, 28 de fevereiro de 2010

kosmos (ou Variação sobre uma Letra de Vitor Ramil)

Criança não é homem
homem não é velho
velho não é morto
morto não é osso
osso não é pó
pó não é vento
vento não é tempestade
tempestade não é mata
mata não é queimada
queimada não é rio
rio não é oceano
oceano não é horizonte
horizonte não é fim
fim não é história
história não é descobrimento
descobrimento não é índio
índio não é cocar
cocar não é carnaval
carnaval não é favela
favela não é fome
fome não é discurso
discurso não é sindicato
sindicato não é revolução
revolução não é guerra
guerra não é bomba
bomba não é deserto
deserto não é pedra
pedra não é areia
areia não é tempo
tempo não é destino
destino não é signo
signo não é religião
religião não é totem
totem não é caverna
caverna não é fogo
fogo não é luz
luz não é verdade
verdade não é fé
fé não é ciência
ciência não é máquina
máquina não é progresso
progresso não é aço
aço não é sangue
sangue não é miséria
miséria não é grito
grito não é grilhão
grilhão não é prazer
prazer não é sexo
sexo não é culpa
culpa não é castigo
castigo não é perdão
perdão não é paz
paz não é uma pomba
pomba não é amor
amor não é ciúme
ciúme não é crime
crime não é punição
punição não é dor
dor não é justiça
justiça não é silêncio
silêncio não é boca
boca não é língua
língua não é palavra
palavra não é poesia
poesia não é alma
alma não é deus
deus não é imagem
imagem não é igreja
igreja não é céu
céu não é estrela
estrela não é sonho
sonho não é lua
lua não é mãe
mãe não é ventre
ventre não é infinito
infinito não é universo
universo não é microscópio
microscópio não é célula
célula não é semem
semem não é feto
feto não é criança
criança — pai do homem.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Response to Gertrude Stein

A sore is a sore is a sore is a sore.
Some will heal,
some won’t.
Lovely loneliness.
Some will feel,
some won’t:
Lonely loveliness.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

à la minuta
ala minuta
alá minuta
alaminuta
a-la-mi-nu-ta

Alá Minutá
Al Amin Ut’ah
Alá, Amin não tá.
Aliás, a mim não falta.

Mas o bife bem passado,
um ovo estalado,
o arroz acompanhado
de feijão bem temperado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

o fim do mundo

O mundo acabou numa quarta-feira, às três e dezessete da tarde, hora local. A ocasião perfeita, pois ninguém esperava. Ao contrário das previsões milenares, o Apocalipse não se deu com espalhafatosos shows pirotécnicos de raios e trovões, ou tonitroante soar de trombetas. Tampouco houve sonhos agourentos de videntes. Os astrólogos nada viram nos astros que pudesse antever o Fim das Eras. Para os astrônomos em seus observatórios, nada havia nos mapas estelares que acusasse algum fenômeno em andamento. Nem mesmo as Bolsas de Valores tiveram movimentos extraordinários que fizessem suspeitar alguma mudança mundial iminente. Não houve prenúncios. O único sinal visível foi uma leve agitação dos animais no zoológico, momentos antes.

O Fim foi rápido e definitivo. Súbito, o Sol expandiu-se num clarão que tomou conta do céu, como se engolfasse a Terra. Envoltos na luz cegante, ninguém pôde abrir os olhos que não tivesse as retinas queimadas. Numa fração de segundo a temperatura subiu muito. Em toda a face iluminada da Terra, quem estava desabrigado nas ruas sofreu queimaduras. Quem estava ao sol em praias tropicais foi carbonizado instantaneamente. A superfície dos mares entrou em ebulição. Florestas inteiras incendiaram-se. Objetos e casas prenderam fogo espontaneamente. Mas as pessoas mal tiveram tempo de gritar, apavoradas. Alguns segundos depois, a Luz se arrefeceu, diminuindo aos poucos. Porém o Sol não voltou ao normal: continuou enconlhendo-se gradualmente; em seu lugar, surgia pouco a pouco no horizonte uma noite crescente, pontilhada de estrelas. E o Sol foi ficando cada vez menor, como se de fato diminuísse de tamanho ou se distanciasse — que diferença? —, até tornar-se ele mesmo uma entre as incontáveis pequeninas estrelas no céu. E o que minutos antes fora uma tarde ensolarada, era agora uma vasta noite repleta de estrelas. Os que se aventuraram a olhar para o Sol moribundo, juraram vê-lo diminuir até ficar minúsculo e por fim apagar-se. E nesses poucos minutos, nem um ruído veio do céu. Por toda a parte onde fora dia, milhões de explosões, devido ao calor repentino: refinarias de petróleo, usinas nucleares, fábricas, edifícios, explosões e incêndios numa colossal reação em cadeia. Porém no céu, nem um trovão. O Sol explodiu e desapareceu sem ruído: o mundo acabou em silêncio e solidão.

A estupefação e o pasmo foram tais que levou tempo até que alguém conseguisse pronunciar a primeira frase:

- É o fim do mundo...

A essa altura, os cegos, os queimados e os desabrigados já gritavam em desespero e dor. Muitas pessoas não recobraram a consciência: permaneceram catatônicas na posição em que estavam quando a coisa aconteceu. Outras, passado o susto inicial, tentavam convencer-se de que se tratava apenas de um fenômeno metereológico estranho, algum eclipse inusitado. Outras ainda, não fosse a pele chamuscada, jurariam estar sonhando. Houve quem não pensasse nada, apenas tentasse socorrer das chamas algum parente ou conhecido. Até que a implacável constatação desceu às mentes, com um calafrio gelado na espinha: o sol tinha desaparecido.

- Meu Deus, o Sol se apagou: é o fim do mundo!

A frase espalhou-se entre as pessoas com a mesma velocidade das chamas. Em pouco tempo, multidões gritavam desesperadas e corriam em desatino pelas ruas das cidades. Sem rumo: para onde quer que fossem, tudo era uma noite imensa e inexorável.

Quem tinha alguma crença ou fé só conseguia se perguntar: “Por quê? Por quê?!” Mesmo os crentes mais fervorosos não conseguiam admitir que tivesse chegado o Momento. Os cristãos e os muçulmanos sentiram pânico pelo inesperado Apocalipse, e desesperada frustração por não terem sido arrebatados. Os ateus finalmente acreditaram em Deus, e lamentaram não se terem arrependido antes.

E então, como se os medos recônditos de cada um saíssem de suas entranhas e viessem à tona, começou a esfriar. O primeiro sinal foi um arrepio — a brisa? pânico? — um arrepio como o que se sente num entardecer de outono — onde era verão. E logo o arrepio tornou-se frio constante. E grossas nuvens começaram a cobrir o céu noturno, e com elas ventos gelados começaram a soprar. Em todos os continentes, chuvas de águas gélidas despencaram do céu coberto. Flocos de neve começaram a cair, e atrás deles mais flocos, e outros mais, e em breve eram tempestades de neve — nas montanhas, nas florestas, nos desertos. O chão cobria-se de um branco silencioso e feroz que não se distinguia na escuridão. A água dos oceanos foi-se tornando em gelo. A Noite Eterna, mortal e desoladora, abateu-se sobre a Terra.

O pesadelo era terrível demais. Não havia como escapar à Noite, nem como abrigar-se dela. Logo não havia mais energia para comunicação ou aquecimento. Quem ligasse o rádio em busca de esperança, só ouvia estática. A água começou a faltar nas torneiras.

Quanto tempo se passou? Dias? Meses? Impossível dizer: os calendários perderam o sentido de ser. Os que não morreram queimados no começo nem tiveram coragem de tirar a própria vida, viram a Eternidade, e perderam a razão. Perderam os escrúpulos, passaram a roubar, matar, tornaram-se canibais, e por fim morreram de fome e frio. A maravilha da criação, obra-prima da natureza, detentor e guardião da inteligência e da cultura, o pequeno e frágil ser humano teve seu fim em dor e desalento, esquecido pelas Alturas e tragado pela noite negra, fria e infinita. Também pereceu toda forma de vida: os animais e as plantas, dos microscópicos aos gigantescos, morreram todos, primeiro pelo fogo, depois pelo frio.

E a Terra, sem astro guia, ficou vagando sem rumo e sem vida pelo espaço sem fim.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Vingança

Ultimamente o espelho anda de mal comigo. Não me faz elogios, agrados ou cumprimentos. Só me denuncia olheiras, rugas e cabelos brancos. Comenta meu ar cansado, ri do meu sorriso amarelo, debocha do meu penteado, desvia o olhar do meu. Aí abro o chuveiro bem quente e deixo o espelho ficar todo embaçado, só de birra. Tiro-lhe a única coisa que não pode me negar: o reflexo dos meus dias.
um bom cálice de vinho
um belo par de coxas ao meu lado
Billie Holiday rasgando na vitrola
uma caneta e um bloquinho:
estou com a vida que pedi a Baco

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Centonomatopéia

Passarinho no jardim:
profusão de perninhas
tamborilando um trote.